Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil? | 💌 Desculpa o Flood #2
Para você que também já se sentiu na obrigação de trabalhar mesmo enquanto estava doente, que rasgou atestado, que sentiu culpa
Imagine o seguinte cenário, completamente hipotético:
Uma pessoa descobre uma doença grave em estágio avançado, possivelmente terminal, e tem que passar por uma cirurgia delicada. A cirurgia é bem sucedida, mas sua vida ainda está em risco. Ela passa alguns meses em uma unidade de tratamento intensivo (UTI). Aos poucos, começa a se recuperar. Seu futuro ainda é incerto, mas, ainda dentro do hospital, ela resolve voltar a trabalhar, pois quer se sentir útil e ocupar a cabeça.
Essa última parte, querer se sentir útil e ocupar a cabeça, foi o que me pegou. Eu consigo ter pelo menos 100 ideias de como ocupar a cabeça sem ser com trabalho em apenas um minuto.
Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil?
“Nós estamos, em nossa relação com a vida, como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo inteiro cobrados a fazer coisas úteis” Ailton Krenak. A vida não é útil.
Sempre ouvi histórias de pessoas que passaram por experiências de quase morte e repensaram completamente suas vidas. Mas de alguém que chegou bem perto de perdê-la e resolveu voltar a trabalhar o mais cedo possível é novidade.
“Quem sobrevive a uma grande catástrofe costuma pensar em mudar de vida porque teve uma breve experiência do que é, de fato, estar vivo”. Ailton Krenak. A vida não é útil.
Essas pessoas encaram, bruscamente, o fato do qual estamos todos cientes: vamos morrer. Então, começam a priorizar o café da manhã com a família ao invés daquela reunião às 9h. A correr diariamente. Fazer yoga. Planejar viagens com mais frequência. Aprendem a dizer não para as urgências alheias. Deixam de atender ligações depois do horário e responder emails no fim de semana. Começam a ir mais à praia, respirar fundo, contemplar a natureza. Mas por que esperam uma tragédia acontecer? E, pelo visto, às vezes nem assim?
“Nós temos que ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência. (...) sobreviver já é uma negociação em torno da vida, que é um dom maravilhoso e não pode ser reduzido.” Ailton Krenak. A vida não é útil
Alguma vez você já se sentiu na obrigação de trabalhar mesmo com a saúde - física ou mental - comprometida?
Essas foram as respostas que recebi na caixinha que abri no Instagram:
Eu mesma já fiz tudo isso também, desde jogar atestado médico fora a trabalhar com COVID para não me ausentar por muito tempo.
Quantas vezes você já sentiu culpa por não ter condições? Medo de ser julgado pela chefia ou até pelos próprios colegas? De acharem que é falta de comprometimento? De ser demitido? De faltar dinheiro?
Se quiser, compartilha sua história com a gente no campo de comentários aqui da news. Você vai achar um botão de comentário no fim do texto.
Tem outras duas histórias que me chamaram a atenção recentemente, de pessoas em cargos de gestão que passaram por tragédias familiares. A mãe de uma delas faleceu de câncer e ela ainda precisa cuidar do pai em estado grave. A outra vive o luto de ter perdido uma filha em um acidente. A primeira não parou de trabalhar nenhum dia. A segunda em duas semanas já estava de volta.
Não vou dizer que conheço nenhuma delas. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Mas todas essas histórias me chocam. Ainda que não devessem, se considerarmos que passamos por uma pandemia global, que matou milhares de pessoas, e vimos sujeitos temendo não pela vida, mas pelo colapso da economia. Essa coisa invisível, inventada por nós mesmos.
“Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia deles. Ninguém come dinheiro.” Ailton Krenak. A vida não é útil.
Ninguém come dinheiro.
Por que nos sentimos na obrigação de trabalhar mesmo quando estamos doentes?
A resposta curta parece ser unânime: capitalismo. Mais do que isso, Krenak vai no centro da questão quando diz “O modo de vida ocidental formatou o mundo como uma mercadoria”. E com o tempo, viramos uma sociedade do desempenho.
“quem está interessado em existência utilitária deve achar que esse mundo está ótimo: um tremendo shopping.” Ailton Krenak. A vida não é útil.
Gosto muito de como Byung Chu-Han, filósofo e ensaísta, explica essa pressão que nós mesmos nos colocamos. Em seu livro “A Sociedade do Cansaço” ele diz que passamos de uma sociedade pautada pela disciplina, onde a proibição e a lei eram operantes, para uma sociedade do desempenho, movidos por iniciativa e motivação.
Você consegue. Nada é impossível. Seja todos os dias um pouco melhor do que ontem. Viramos grandes otimistas. Tão otimistas, em busca da melhora, que não conseguimos nunca ser suficientes. Não à toa vimos o crescimento exponencial de uma indústria de coaches.
Só que o excesso de positividade, na verdade, é um retrocesso. Ele modifica radicalmente a estrutura da atenção e nos aproxima da vida em estado selvagem. Han explica que a multitarefa é uma característica de animais selvagens, porque um animal ocupado em mastigar, por exemplo, tem que se preocupar ao mesmo tempo em não ser comido.
“Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente. (...) Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto.” Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço.
Ah, Laura, mas precisamos trabalhar para colocar comida na mesa…
É claro que é necessário fazer recortes de classe social, raça, gênero na discussão e lembrar que, na configuração econômica e social em que vivemos hoje, a maioria esmagadora das pessoas ainda precisará se submeter ao trabalho como forma de produzir sua vida. Não é esse o meu ponto.
Até porque a maior parte dos povos que conseguiu se ejetar desse sistema (ou nunca fazer parte dele), caiçaras, quilombolas, povos indígenas, foi largada à margem e, como pontua Krenak, considerada praticamente como uma sub-humanidade.
“O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso. O mundo possível que a gente pode compartilhar não tem que ser um inferno, pode ser bom. Eles ficam horrorizados com isso, e dizem que somos preguiçosos, que não quisemos nos civilizar””. Ailton Krenak. A vida não é útil.
Essa pressão auto imposta por trabalhar sob qualquer condição, que nos leva a rasgar atestados, sorrir, acenar e dizer que está tudo bem é prova de que a autoexploração é mais eficiente que uma exploração do outro.
A autoexploração caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade.
Por isso, não importa se você trabalha CLT em uma empresa com uma cultura que te apoia, se seus colegas são compreensivos ou se você é autônomo e tem reserva de emergência. Somos exploradores e ao mesmo tempo explorados. Liberdade e coação coincidem.
Ficamos livres para trabalhar 24 horas por dia, 7 dias por semana. Ficamos livres apenas para nos matar de trabalhar. Ou para trabalhar até morrer.
“Foucault tem uma obra fundamental, Vigiar e punir, na qual afirma que essa sociedade de mercado em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo. Com o avanço do capitalismo, foram criados os instrumentos de deixar viver e de fazer morrer: quando o indivíduo para de produzir, passa a ser uma despesa”. Ailton Krenak. A vida não é útil.
“Ou você produz as condições para se manter vivo ou produz as condições para morrer”
Se você fizer a seguinte pesquisa no Google: “por que as pessoas se sentem obrigadas a trabalhar mesmo quando estão doentes?” vai encontrar na primeira página de resultados diversas matérias mostrando como essa atitude é prejudicial para as empresas.
Sim, você não leu errado. Para as empresas, não para você. Para nós. Para a sociedade. Parece que trabalhar quando não está se sentindo bem tem até um nome chic. Presenteísmo. E custa bilhões de dólares para empresas no mundo inteiro, devido à baixa produtividade, já que as pessoas estão…doentes!!!
É triste, mas não surpreendente, que o argumento mais contundente para convencer as empresas a cuidarem das pessoas que produzem o seu lucro é pelo tamanho do rombo que isso vai causar ao bolso delas se não o fizerem.
É uma piada que estejamos calculando quanto custa para as empresas a “ineficiência do trabalho” por problemas de saúde mental.
Considerando que, segundo um levantamento feito pelo Ministério da Previdência em 2017, quase um terço dos casos de afastamento no trabalho é transtorno mental PROVOCADO pelo ambiente de trabalho. E agora, José?
A verdade é que nós não precisamos de nada que esse sistema pode nos oferecer, mas ele nos tira tudo o que temos. Ailton Krenak. A vida não é útil.
Então, te pergunto de novo: por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil?
🤡 “Os jovens estão buscando energia pra sessões de ginástica e pra aguentar longas jornadas de trabalho"
Outro dia vi na The News, uma newsletter de notícias diária, que a Pepsi investiu US$ 550 milhões na Celsius, uma fabricante de bebidas energéticas “saudáveis”. No ano passado, a Coca-Cola gastou US$ 5,6 bilhões com a BodyArmor, rival da Gatorade, focada na saúde.
É um caminho natural enquanto consumidores ficam mais conscientes e substituem os refrigerantes açucarados por bebidas funcionais. Há pelo menos 3 anos, a TrendWatching, uma consultoria especializada em tendências globais, aponta que incorporar formas de bem-estar aos produtos é uma tendência a ser seguida.
Curiosamente, consumimos ~bem-estar para poder…produzir mais? A conta não fecha.
💸 Publi de milhões
Um ótimo exemplo de como usar marketing de influência, conteúdo e mídias tradicionais. Outro do Mateus (eu juro que sigo outros criadores):
😢 Triste, mas não surpresa
Que o mercado publicitário é reconhecidamente insalubre e machista não é novidade. Mas esse depoimento da Yuri Mussoly, Head de Criação para América Latina no Tik Tok e considerada umas das 50 pessoas mais criativas no Brasil em 2020 pela Wired, me entristece profundamente.
Fui convidada para ser jurada em um festival de criação. O maior deles, aqui do Brasil. Não é a primeira vez. Ser jurada é algo que faço todos os anos, nos últimos 5 anos. São dias de votação online. Depois, um dia de votação intenso, com discussão entre o grupo de jurados. Acho bem construtiva a troca e, por esse motivo, sempre aceito os convites. Porém, este ano algo atravessou meu julgamento e, ironicamente, sendo eu a jurada, fui julgada por ser mãe. Uma recém-mãe.
“Talvez daqui a alguns anos”, quando seu filho não precisar mais de você, Yuri. “Talvez na próxima encarnação, vamos torcer para você voltar pai e então ter mais tempo livre”.
2022 e parece que nenhum avanço foi feito. Seguimos.
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Em sua semana de estreia, essa newsletter chegou a 50 inscritos. Como eu sou empolgada, agora ela tem também Instagram e Tik Tok. Vou adorar se você quiser acompanhar pelas redes também!
A internet tem uma infinidade de conteúdo que você nunca vai conseguir consumir. Obrigada por ter escolhido estar aqui e desculpa o flood :)