Lives NPC para além do julgamento de valor e dos memes | 💌 Desculpa o Flood #8
Criadores são o elo mais fraco de um ecossistema que impele a servir a audiência, o algoritmo, as plataformas sustentado por uma fantasiosa promessa empreendedora.
Declínio da humanidade. Bizarro. Quando acho que já vi de tudo. Perdeu o respeito e a dignidade. A que ponto chegamos. Cada dia mais ridículo tudo isso. Não faz sentido e as pessoas estão lucrando. Isso é muito Black Mirror.
Esses são alguns comentários sobre as lives NPC desde que elas viralizaram e furaram a bolha do Tik Tok.
O último sempre acho curioso, considerando que Black Mirror nada mais é do que uma alegoria da realidade. Uma representação hiperbólica, com contornos de sátira, do real.
É quase como tomar um susto ao se olhar no espelho.
O tribunal da internet é rápido em julgar e o brasileiro em transformar em piada. Como sempre, com informações tiradas de contexto ou pela metade. Mas se a primeira reação a essas lives foi o susto e incredulidade, sugiro tirarmos o zoom e pensarmos para além do julgamento de valor e dos memes.
Passado o sobressalto, é possível enxergar as lives de NPC como uma evidência de um problema muito maior na internet: a lógica de criação de conteúdo e monetização que precariza o trabalho e transforma os criadores em meros produtores do que o público quer, do que engaja, do que entrega.
Eles são o elo mais fraco de um ecossistema que impele a servir a audiência, o algoritmo, as plataformas.
“O criador de conteúdo tem um chefe invisível, opaco e ‘maquínico’. É um chefe que não dá feedback, só penaliza. Ele cobra aceleração e produção no ritmo das máquinas, não é no ritmo humano”, Karhawi para a Fast Company.
Mais ainda, deixa aqueles que criam sujeitos ao chamado “sequestro pela audiência”, quando o apetite desenfreado por atenção faz com que a pessoa seja consumida pela persona.
“Envolve a substituição gradual e involuntária da identidade de uma pessoa por outra feita sob medida para o público” Gurwinder
O que é NPC?
Vamos a uma breve explicação, por partes, para quem teve o prazer em ficar de fora: a sigla NPC vem do inglês “Non-Playable-Character”, personagem não jogável, e é usada nos videogames para definir personagens que você não consegue controlar. Basicamente, são aqueles avatares que andam sem rumo ou ficam travados de frente para uma parede falando a mesma frase enquanto fazem movimentos repetitivos.
E as lives NPC?
Nas lives que ficaram famosas, as pessoas se fantasiam e imitam o comportamento robotizado e repetitivo dos personagens não jogáveis cada vez que recebem presentes.
🌹 Thank you for the rose 🌹 thank you for the rose 🌹 obrigada pela rosa 🌹 obrigada pela rosa 🌹
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Embora alguns TikTokers tenham aderido à tendência quando perceberam que havia a possibilidade de ganhar dinheiro, como a canadense Pink Doll, a criadora Natuecoco que é amplamente creditada por iniciar esse movimento conta que começou o streaming de NPC como um experimento.
A japonesa se inspira na arte, nos videogames e no cosplay, que encontra referência direta na forma como ela se caracteriza. Em entrevista para a Insider, ela conta que seu objetivo era descobrir o que fazia as pessoas se comportarem de determinada forma.

Muito do choque gerado por esse tipo de live pareceu encontrar justificativa no controle do criador pela audiência, como uma marionete.
Mas investigando mais a fundo: quem está controlando quem ?
“Eu queria estimular o público e ver quais reações eles teriam aos diferentes movimentos que eu realizava. Então criei diferentes movimentos e construí uma ponte de comunicação através das reações do público.” Natuecoco para a Insider
É a representação de um personagem não jogável, afinal.
O Felca estragou o Tik Tok
No Brasil, a coisa saiu de controle quando o Youtuber Felca resolveu fazer lives NPC como uma crítica ao conteúdo que considera vazio. Em quatro dias, ganhou mais de 1 milhão de seguidores. O que levou quatro anos para acumular no Youtube.
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Com o alcance, as pessoas começaram a especular quanto Felca e outras pessoas que transmitiam lives NPC estava faturando. As especulações deram conta de informar ao público geral que o valor chegava em até seis dígitos por live.
Quer promessa mais tentadora para o brasileiro do que fazer dinheiro fácil, do conforto de casa, só precisando passar um pouco de vergonha?
Aqui, é importante pontuar como funciona o sistema de monetização das transmissões ao vivo no Tik Tok.
O fator monetário
A plataforma tem um recurso que possibilita a audiência enviar presentes virtuais para o criador durante as lives.
São figurinhas ou moedas, que podem ser trocados por dinheiro. Esta é uma forma não só do criador monetizar seu conteúdo, como também do Tik Tok medir o nível de popularidade daquele usuário.
Cada uma tem seu valor. As mais populares, rosa, milho, café, bravo, valem 1 moeda, que por sua vez vale 0,6 centavos de dólar (R$0,30 na conversão para real).

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Percebe que com esse valor, é necessário um alcance alto para chegar a um faturamento razoável? Seriam necessárias 3.350 rosas, milhos, cafés ou bravos para juntar mil reais. Precisaria de quantas pessoas assistindo para somar 3.350 presentes?
Os casos de quem ganhou muito dinheiro com isso são específicos, gente que já tinha alcance e audiência consolidada em outras plataformas.
Percebe que uma pessoa comum não consegue exatamente ganhar a vida fazendo lives NPC?
Na verdade, foi depois das lives que o Felca fez como piada e do alcance gerado que as pessoas tiveram a ideia de ver quanto conseguiriam faturar com a brincadeira.
Foi quando vídeos como tema “Quanto ganhei em x horas de NPC” passaram a aparecer com frequência na timeline.
Me parece mais uma brincadeira que saiu do controle, estourou a bolha e chegou ao público geral, que com pouca informação bateu o martelo do tribunal.
Mas definitivamente evidencia diversos problemas da chamada creator economy, uma economia que favorece todo mundo menos o creator.
O vazio de conteúdo das lives NPC preocupa, mas você já viu os vídeos dos canais dos maiores criadores no Youtube de 2022?
Os vídeos, a estética, o conteúdo: tudo igual.
Me parece quase um modelo de produção industrial, automatizado, repetitivo e que carece de qualquer manifestação criativa.
Sem mencionar a exposição ao ridículo, porque não estamos fazendo julgamento de valor aqui. A gente também tem vergonha disso? Ou tá de boa?
Esse tipo de repetição e controle da criação pela audiência a gente condena?
🌽 milho, nhanhamnham, milho 🌽
“Existia esse canto da sereia de que a creator economy seria um espaço para as pessoas ganharem dinheiro fazendo o que amam. Mas, na realidade, eles são o proletariado do conteúdo”, diz André Alves, escritor, psicanalista, pesquisador de comportamento e cofundador da Float em entrevista para a Fast Company.
Segundo pesquisa da Inflr, 75% dos jovens brasileiros querem ser influenciadores digitais.
Então, fazer de si uma marca e gerenciá-la tornou-se praticamente mandatório.
Só que há um abismo entre ter uma marca e tentar ser uma.
Nos últimos anos, as marcas têm feito um movimento para se humanizar e as pessoas estão indo pelo caminho oposto. Falamos disso na Desculpa o Flood #4.
Todos os dias tem criador reclamando que o algoritmo não entrega e pensando novas acrobacias para melhorar seu alcance.
Quando quem você é começa a se misturar com uma proposta capitalista de como vender mais, sustentada por uma fantasiosa promessa empreendedora, fica fácil se perder. O eu vira produto. Assim, está inclinado a existir para atender as demandas do consumidor.
“Quais são os limites para monetizar-se a si mesmo, numa lógica do ‘sujeito como mercadoria’?” questiona Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital
O que vale para conquistar e reter a atenção da audiência?
24 horas fazendo o que a vai engajar mais. 2 horas interpretando um personagem NPC em troca de algumas moedas.
“De acordo com o Censo de Criadores de Conteúdo do Brasil, feito pela Squid em 2023, dois terços dos criadores de conteúdo brasileiros não recebem nem um salário mínimo por mês. Menos de 15% recebem entre R$ 1,3 mil e R$ 3 mil mensais.
Levantamento feito pela Brunch e a Youpix mostra que 67,1% dos creators brasileiros aceitaram fazer conteúdo em troca de brindes e produtos. A maioria deles fecha entre um e dois trabalhos por mês, mas 25% simplesmente não recebem pagamento para criar postagens e vídeos”.Trecho de matéria da Fast Company
A realidade aponta para um mercado que recebe pouco e aceita trocar trabalho por visibilidade. Um mercado onde criadores alimentam e enriquecem as plataformas e recebem pouco ou nada por isso.
Além disso,
“O desejo de reconhecimento em um mundo cada vez mais pulverizado nos seduz a ser quem estranhos desejam que sejamos”
Não são as lives NPC que são bizarras, o declínio da humanidade, o fim da dignidade.
Como diria a sabedoria popular: o buraco é mais embaixo.
Será que alguém leu até aqui? Essa edição ficou especialmente grande! Desculpa o flod!
Deixa um comentário para eu não achar que falei sozinha?
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