Onde fica o lá em que você quer chegar? | 💌 Desculpa o Flood #9
Em uma sociedade movida pelo desempenho e pela motivação, será que um dia a gente chega? E, se chega, sabemos identificar? E celebrar?
Eu tô um pouquinho atrasada na sua caixa essa semana, porque esta é a primeira edição que também está disponível em áudio para você ouvir se preferir! Além disso, aproveitei o embalo e agora também estamos no Spotify! Me conta se gosta desse formato?
Semana passada, a edição da news para assinantes ia ser uma curadoria, especialmente porque eu queria muito compartilhar com a comunidade uma ferramenta para fazer download de materiais online sem ser importunado com emails de venda depois.
Mas virou uma coisa totalmente diferente no caminho. Uma análise completa sobre marketing de interrupção e marketing de conteúdo, com estudo de caso do maior Youtuber do mundo e como vender usando criatividade, influência e entretenimento. Como se não bastasse, ainda inclui uma lista de exemplos de outros casos de sucesso no final.
Então eu me dei conta que eu faço isso com frequência. “Me empolgo”. O que se esconde por traz da empolgação é, na verdade, uma incessante sensação de não estar bom o suficiente.
Aí eu adiciono mais dados, mais referências, cruzo mais informações e no final peço desculpa pelo flood e torço para que alguém leia tudo.
Nunca tinha visto ninguém traduzir essa insatisfação do jeito que a Isabela Reis fez no episódio “Quanto é o Suficiente?”, do podcast “Conselhos que você pediu”. Porque não é bem uma síndrome do Impostor. Como ela, eu também me acho bastante boa. Sou super competente, qualificada e etc. Meu problema não é me achar ruim, é não achar que o que faço não está bom o suficiente e esgarçar a atividade, seja ela qual for, até o limite.
“A gente guerreia com tudo que a gente faz porque queria estar sempre melhor e sempre comparado a outras pessoas.” Bela Reis
Qual o parâmetro, que seja suficientemente bom? Existe um seu? Ou você tá sempre se comparando com os outros?
Há uma eterna ilusão de que dá para tentar mais, fazer mais.
Isso também tem muito a ver com o que falamos lá na Desculpa o Flood #2, sobre porque insistimos em transformar a vida em uma coisa útil.
A autoexploração caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade.
Também acho que as pessoas deram uma embolada nas coisas depois que o Simon Sinek surgiu com a história de Encontre Seu Porquê.
Em sua famosa palestra no TED e em seu livro, ele fala sobre como líderes e organizações inspiradoras no mundo pensam, agem e se comunicam a partir de um porquê.
"Por que sua organização existe? Por que você sai da cama pela manhã? E por que alguém deveria se importar?"
Simon mistura indivíduos e organizações e estabelece um guia de como eles devem operar, como se PESSOAS e EMPRESAS pudessem ser equiparadas.
Eu pesquisei “empresa” no dicionário e essa é a definição do Michaelis:
1 Sociedade organizada para a exploração de indústria ou comércio; com a finalidade de obter um rendimento monetário através da produção de bens ou de serviços: Empresa industrial. Empresa mercantil.
Com a finalidade de obter um rendimento monetário. Leia de novo se precisar.
Quando Sinek diz que as pessoas não compram o que você faz, elas compram o porquê você faz é uma aula de marketing. Nesta era da mercantilização do eu, da autopromoção profissional quase mandatória, o “comece pelo porquê” vira um guia de como operar.
Aí as pessoas pegam uma visão comercial de como ser um líder inspirador e uma organização de sucesso e tentam aplicar em suas próprias vidas. É óbvio que um monte de gente trava no processo. Você não é uma empresa.
Seu porquê pode ser porque você gosta, porque você quer ou até porque você precisa. Buscar seu “porquê” tem que ser um processo de exploração e não uma sentença definitiva. Você pode, no fim das contas, nunca encontrar mas vai saber que tentou várias opções por si próprio e não pelos outros (pela “audiência”).
Em “A vida não é útil”, Ailton Krenak é certeiro quando aponta que:
“O modo de vida ocidental formatou o mundo como uma mercadoria”
Com o tempo, viramos uma sociedade do desempenho - que por sua vez precisa ter um porquê, um propósito maior.
Sinek também diz que “ter lucro” não pode ser um porquê, que lucro é resultado, “é sempre resultado”.
Segundo levantamento mais recente da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), realizado entre os anos de 2020 e 2022, 10,1 milhões de brasileiros estavam em situação de fome. Outros 21,1 milhões, em condições de insegurança alimentar grave. Isso significa que mais de 21 MILHÕES de brasileiros não tem o que comer todos os dias.
Em 2023, um terço dos trabalhadores brasileiros ainda vivem com rendimento menor do que um salário mínimo. São mais de 33,2 milhões de pessoas.
O porquê do brasileiro é porque precisa colocar comida na mesa
Em uma sociedade capitalista, como “lucro” vai ser só o resultado? Bem, eu escrevo essa newsletter por hobby e se um dia conseguir fazer dinheiro com ela vai ser incrível. Meu porquê hoje é porque eu gosto. Mas isso só é possível porque eu tenho um emprego que paga minhas necessidades básicas e coloca comida na mesa. Caso contrário, essa brincadeira acabaria rapidinho.
Essa obsessão em que as pessoas entraram de encontrar seu porquê, seu propósito profissional e de vida tem muito mais a ver com a lógica do desempenho explorada pelo filósofo e ensaísta Byung Chu-Han em seu livro “A Sociedade do Cansaço”.
Trago aqui um pedaço da edição #2 dessa news, onde exploramos bem esse assunto.
“Han diz que passamos de uma sociedade pautada pela disciplina, onde a proibição e a lei eram operantes, para uma sociedade do desempenho, movidos por iniciativa e motivação.
Você consegue. Nada é impossível. Seja todos os dias um pouco melhor do que ontem. Viramos grandes otimistas. Tão otimistas, em busca da melhora, que não conseguimos nunca ser suficientes. Não à toa vimos o crescimento exponencial de uma indústria de coaches.”
Aí voltamos para o episódio do “Conselhos que você pediu” onde a Isabela expressa essa frustração
“Eu me sinto subindo uma montanha. A gente chega no topo da montanha e ai a gente não consegue curtir o topo da montanha. A gente fica ali 3 minutos. O tempo de um reels. Aí a gente fala: beleza, foi bacana estar aqui “e agora?”. Ai a gente entra em um ciclo de insatisfação com esse novo lugar que anteriormente tinha sido tão almejado, sonhado, idealizado. Aí a gente conquista e não se dá o direito de comemorar, de sentar, respirar e dizer: putz, tá muito bom aqui, como eu estou sentindo preenchida por essa conquista.”
Ela questiona o quanto isso tem a ver com uma ansiedade de sair da zona de conforto. É a obsessão imposta pelo desempenho.
Eu participo da comunidade Somos Madrastas, a maior comunidade brasileira de mulheres que se tornaram madrastas no Brasil, que foi inclusive a melhor coisa que eu descobri na internet esse ano. Foi ela que inspirou a edição #7 dessa news sobre a lógica que leva o ser humano a se organizar em grupos de interesses. Foi ela que me inspirou a criar a minha própria comunidade aqui na Desculpa o Flood.
Enfim. Não só de madrastidade vive o Somos Madrastas. Mari, a criadora, fala sobre maternidade, sobre a mulher na sociedade, sobre educação positiva, psicologia, traumas e várias outras situações de seu dia a dia com as quais qualquer pessoa pode se relacionar. Todos os dias ela envia um diário para apoiadoras. Em um deles, ela disse assim:
SABE?
Olha, eu sou corredora. Quem acompanha a Desculpa o Flood no Instagram me viu falar sobre como meu processo de criação está totalmente relacionado à corrida. É quando meu cérebro faz as conexões mais aleatórias e tenho as ideias que mais gosto. Talvez seja porque é uma das únicas oportunidades em que consigo entrar em estado de flow, um estado meditativo mesmo, onde a ansiedade se dilui e fico só observando os pensamentos aleatórios passarem, ainda que seja por causa do esforço e da dor.
E aí que eu nunca fui aquela atleta que acorda dizendo “nossa, hoje estou super animada para dar uma corridinha”. Eu não gosto de ir. Eu gosto de voltar. Eu gosto depois que eu já me livrei daquela atividade e que sinto os efeitos da endorfina no meu corpo. Eu nunca me arrependo de ir, mas vai ser mentira se eu te disser que não é sempre com grande esforço que me arrasto para fora de casa.
Se não me engano tem até um livro onde Drauzio Varella explica como a evolução nos fez biologicamente preguiçosos.
Meu ponto é: eu gosto de ver o pórtico e atravessá-lo.
Como a Mari, me interessa chegar. A romantização do sacrifício não me pega. Como a Isabela, eu quero mais é ficar na minha zona de conforto. Sabe aquelas ilustrações de cachorrinho correndo atrás de um osso pendurado por uma vara, que ele nunca vai alcançar? Eu sinto que estamos assim enquanto sociedade.
Isso me faz pensar sobre a questão do chegar lá. Onde é lá?
Quando a gente fala de corrida fica mais materializado. Mas e quando a gente fala de objetivos que são mais subjetivos. Como é a sensação de chegar lá em outras esferas da vida? E por que a gente se cobra tanto para chegar nesse lugar que a maioria de nós nem sabe onde é e, se sabe, quando chega, não aproveita a vista?
A gente sabe identificar o lá?
Eu cheguei lá quando vendi minhas coisas, troquei minha cama por uma mochila e comecei a viajar pelo Brasil enquanto trabalhava remotamente compartilhando o processo no @caminhodoagora. Durou muito menos do que eu gostaria. Vai fazer dois anos que me cobro para dar o próximo passo ou simplesmente dar prosseguimento no sonho anterior.
Quando chega, a gente aproveita?
Em algum momento, a gente fica confortável com nosso cenário atual?
Você chegou “lá” em alguma esfera da sua vida?
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Obrigada por ler até o final e desculpa o flood! :)